quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Telemóvel e Criminalidade: Burla com Recurso aos Serviços de Conta Móvel da Vodacom (M-Pesa) na Cidade de Maputo


Trabalho elaborado pelo estudantes do curso de licenciatura em Antropologia da Universidade Eduardo Mondlane (Moçambique) na disciplina de Sociologia do Crime.

Autores: António Vilanculo e Hélder Luís

1.     Introdução

O presente trabalho aborda sobre as burlas com recursos a conta móvel da Vodacom (M-Pesa) na cidade de Maputo, um fenómeno visto como crime que deriva da introdução de serviços de conta móvel que são administradas pelas empresas de telefonia móvel.

Para a sua realização, fizemos uma pesquisa onde analisamos os dados com base numa das teorias de crime estudadas na cadeira de Sociologia do Crime. Neste sentido, a teoria usada para explicar a realidade constatada é a estrutural - funcionalista de Robert Merton, por ser a que melhor se adequa a realidade constatada. 

Depois desta breve nota introdutória, apresentamos o problema da pesquisa e a justificativa; de seguida apresentamos os objectivos e a hipótese; em terceiro lugar, mostramos os procedimentos metodológicos seguidos; em quarto, fazemos o enquadramento teórico e definimos os principais conceitos; em quinto, apresentamos e analisamos os resultados obtidos; e por fim apresentamos as conclusões.

2.     Problematização

A evolução da tecnologia que tem sido agregada à telefonia móvel como recursos de envio de mensagens, fotos, filmes e dados, gravação de voz, reprodução de arquivos de áudio e, mais recentemente, o serviço de conta móvel.

Segundo Sá Garay (2015) o telefone móvel é o meio mais prático, rápido e acessível de comunicação actualmente, sendo amplamente utilizado por grande parte da população mundial. Com tantas vantagens, é evidente que o telefone servirá também como instrumento para actividades criminosas, servindo como um instrumento que facilita os delinquentes a cometerem crime.

Como corolário da introdução de conta móvel nos serviços de telefonia móvel, temos, dentre vários, o m-pesa como um dos serviços mais proeminentes de conta móvel em Moçambique que é suportado pela empresa Vodacom. Entretanto, a nossa preocupação esta na compreensão dos mecanismos de burla com recurso ao uso deste serviço.

2.1.Pergunta de partida

A partir de episódios de burla envolvendo pessoas burladas e com recurso à serviço de conta móvel da Vodacom (M-pesa), pretendemos saber as diversas formas que os delinquentes usam para burlarem os indivíduos a partir de depoimentos das vítimas.

3.     Justificativa

O presente trabalho surgiu da necessidade de compreender a complexidade dos episódios de roubo com recurso aos serviços de conta móvel oferecidos por empresas de telefonias moves nos decorrentes do cotidiano onde várias pessoas próximas a queixam-se de terem sido roubados (burlados) através de chamadas por telefone ou mensagens por SMS.

Os delinquentes (burladores) contactam telefonicamente as suas possíveis vítimas anunciando uma determinada questão que seja do interesse da vítima e se fazendo passar por alguém que queira ajudar. E com o aparecimento das contas móveis (mpesa, mkesh) os delinquentes usam as mesmas artimanhas para enganar as suas vítimas e tirarem dinheiro sempre que a pessoa tiver um serviço de conta móvel activo.

4.     Objectivos do trabalho

4.1.Geral

v  Compreender as diferentes formas de burla, feito com recurso aos serviços de conta móvel a partir dos depoimentos das vítimas.

4.2.Específicos

  • Identificar vítimas ou pessoas que tenham passado por experiência de roubo com recurso aos serviços de conta móvel;
  • Recolher evidências e depoimentos falados das vítimas;
  • Fazer o enquadramento teórico dos dados obtidos a partir dos depoimentos falados por parte das vítimas.

5.     Hipótese

Para cometerem o crime de burla com recurso a uso de serviços de conta móvel, os delinquentes o fazem por meio de SMS que são enviadas as vítimas com instruções que quando seguidas, culminam numa transferência imediata de dinheiro na sua conta móvel (m-pesa).

6.     Metodologia

Aqui, apresentamos os procedimentos metodológicos e técnicas de recolha de dados usados no trabalho de campo. A pesquisa seguiu o método etnográfico, baseado na abordagem qualitativa combinada com observação participante no terreno e auxiliada por entrevistas abertas em profundidade e conversas não formais. Com a combinação desses procedimentos foi possível obter experiências e compreender percepções e que as pessoas que sofreram roubos com recurso aos serviços de conta móvel têm sobre a segurança que estes serviços oferecem.

Participaram na presente pesquisa 5 pessoas, das quais 4 de sexo feminino e 1 de sexo masculino. As entrevistas decorreram no bairro da Maxaquene “A”, Campus Universitário, e mercado de Xipamanine na cidade de Maputo.

O estudo foi realizado seguindo pessoas que sofreram burla com recurso ao serviço de conta móvel que, de forma indicados conseguimos os localizar. As entrevistas abertas e conversas não formais foram feitas a pessoas de diferentes categorias. 

A pesquisa teve três fases a saber: a fase exploratória que consistiu na revisão da literatura e exploração de dados no contexto de pesquisa; a fase de trabalho de campo e a análise de dados.

7.     Enquadramento teórico e definição dos conceitos

7.1.Enquadramento teórico

Segundo Baratta (1999), Robert Merton se utiliza da noção de anomia para indicar como o desvio é um produto da própria estrutura social, absolutamente normal, na medida em que esta própria estrutura acaba compelindo o indivíduo à conduta desviante, apresentando-lhe metas, mas não lhe disponibilizando os meios necessários para a sua consecução, de maneira a "tirar-lhe o chão", abandonando-o sem possibilidades "normais" de obter seus objectivos. Ausentes os meios legais, mas presente a pressão para a conquista dos objectivos impostos socialmente, esse vácuo (anomia) necessitará ser preenchido de alguma forma. Essa forma é a perseguição dos fins por meios ilegais, desviantes, já que os legítimos não estão disponíveis.

Merton desenvolveu o conceito de "anomia", para descrever o desequilíbrio entre metas culturais e meios institucionalizados, referindo-se das discrepâncias entre os objectivos culturalmente definidos e os meios institucionalizados disponíveis para atingir esses objectivos (Veras, 2006). 

Para Merton, “a desproporção entre os fins culturalmente reconhecidos como válidos e os meios legítimos à disposição do indivíduo para alcançá-los, está na origem dos comportamentos desviantes” (Baratta, 1999: 63). E mais: “a cultura coloca, pois, aos membros dos estratos inferiores, exigências inconciliáveis entre si. Por um lado, aqueles são solicitados a orientar a sua conduta para a perspectiva de um alto bem-estar; por outro, as possibilidades de fazê-lo, com meios institucionais legítimos, lhes são, em ampla medida, negadas”.

Merton, propôs que desvio baseia-se em dois critérios: (1) motivações de uma pessoa ou sua
adesão a metas culturais; (2) a crença de uma pessoa em como alcançar seus objectivos. Há uma tensão entre a estrutura cultural e a estrutura social induzindo o indivíduo a uma opção entre as vias existentes: a conformidade, a inovação, o ritualismo, a fuga do mundo ou o retraimento e a rebelião (Merton apud Baratta, 1999).

No caso em análise, quem comete delito com recurso aos serviços de conta móvel enquadra-se no modo de adaptação por inovação, de acordo com a sua definição:
A inovação decorre da ênfase cultural relativa ao êxito, o que estimula a busca por meios proibidos. O delinquente, nesse caso, procura um atalho para alcançar a ascensão social mais rapidamente, isto é, usando meios socialmente não aprovados ou não convencionais para obter metas culturalmente aprovadas. Exemplo: roubo com recurso a serviço de conta móvel (m-pesa) para alcançar a segurança financeira.

7.2.Definição de conceitos

A criminalidade é um fenómeno complexo, formada por um grupo de pessoas bastante dissemelhante, que esta no seio de uma sociedade. Para Lira Júnior citado por Santos e Jesus (2011), toda sociedade possui seus padrões, regras e limites por ela estabelecidos, e quando um indivíduo ou grupo se desvia destas determinações ele provoca mudanças, é considerado desviante da norma social. 

Num sentido formal, crime é uma violação da lei penal, caracteriza-se como a prática de conduta tipificada pela lei penal como ilícita. 

O conceito de burla está associado ao de fraude, a medida em que é considerado como um delito contra o bens ou contra as propriedades alheia. Abrange basicamente em enganar para obter um bem patrimonial.

Burla[1] consiste em alguém, com intenção de obter para si ou para outrem, enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial.

8.     Apresentação e Análise dos Resultados

Nesta secção descrevemos e analisamos os resultados do trabalho de campo. De forma a preservar a identidade e anonimato dos participantes desta pesquisa, omitimos os nomes dos entrevistados, usando nomes fictícios.

Numa análise geral, constatamos que antes de cometerem qualquer burla, os delinquentes editam uma mensagem de confirmação de transferência de um certo valor, na qual se confirma o valor transferido e o saldo existente na conta do receptor da mensagem (o individuo que se pretende burlar). De seguida, envia a mensagem por SMS para as prováveis vítimas, como o exemplo da mensagem que se segue, tirada do telefone de Fazbem[2]:
Confirmado 4EZ55VVDJ3. Recebeste 1000.00MT de 258845150*** - JAIME SITOE aos 15/4/17 as 3:57 PM. O teu novo saldo M-Pesa e de 2000.00MT. M-Pesa e fácil!
Depois de enviarem uma mensagem com mesmas caraterísticas que a mensagem apresentada acima, seguem-se as diferentes formas usadas pelos burladores para efetivarem os seus intentos. Estas diferentes formas podem ser por envio de uma outra mensagem, na qual o delinquente faz-se passar por alguém que por engano, transferiu a o valor para o destinatário desconhecido, conforme ilustra a mensagem abaixo, partilhada pela senhora Júlia[3]:
Boa tarde, enviei 1500MT para sua conta M-pesa falhei número ao digitar, por favor por favor esto pedir devolver o dinheiro. Agradecia imenso!
A outra forma acontece quando, depois do envio da mensagem de confirmação, o delinquente entra em contacto por meio de chamada telefónica com a provável vítima, onde segundo as senhoras Alice[4] e Felismina[5], “os burladores lamentam ter falhado o número e pedem favores para enviar de volta muito rapidamente por estarem muito aflitos e por ser o único valor que tinha para pagar as despesas”.

A terceira forma avançada por Fazbem acontece quando o burlador entra em contacto com a vítima e faz-se passar por um funcionário da operadora móvel que é responsável pela gestão dos serviços de conta móvel na operadora. Aqui, o delinquente informa ao cliente que foi transferido um valor e que o mesmo deve ser rapidamente transferido de volta ao remetente. 

Entretanto, na forma em que o delinquente faz-se passar por alguém que tenha falhado o destinatário transferência do valor, quer seja por meio de chamada, quer seja por meio de mensagem, a consumação da burla acontece em caso de a provável vitima desconhecer da técnica usada ou não ter passado por uma experiencia igual de burla. Caso contrário, a burla não acontece e o delinquente é humilhado, segundo o depoimento da senhora Amina[6]:
Depois de me burlarem os meus 1500,00MT, acho que fiquei durante um mês e duas semanas quando, de repente recebi outra mensagem. Logo depois de receber a mensagem, estava a receber a chamada do burlador que me pedia a mesma coisa (fazer transferência). Eu tive medo, logo comecei a lhe insultar e ele desligou. Mas acho que se fosse primeira vez, podia ser burlada...
Com o depoimento acima, podemos perceber que a burla só acontece em caso de as instruções feitas pelos burladores forem, depois do envio da mensagem, seguidas pela vítima. Também é evidente que os burladores aproveitam-se da falta de informação ou inocência da vítima, ou ainda o facto de a vítima ser muito generosa e transmitir o censo de justiça.

O facto curioso que constatado durante a pesquisa é que o valor que se enuncia nas mensagens enviadas pelos burladores sempre coincidia com o saldo da conta M-pesa das vítimas, o que fazia com que as vítimas pouco duvidassem da idoneidade e proveniência da mensagem. Daí a seguinte dúvida: como os delinquentes conseguiam acertar o valor de saldo que do destinatário? Deixamos a resposta para essa questão as próximas pesquisas.

8.1.Exemplo de uma mensagem de burla



9.     Conclusão

O principal bem que se procura tirar das vítimas é o dinheiro, onde os delinquentes aproveitam-se do desconhecimento das suas vítimas com relação aos crimes decorrentes das burlas com recurso a serviço de conta móvel. 

Os delinquentes simulam a transferência de um certo valor através de SMS e de seguida ensaiam uma mensagem ou chamada se fazendo passar de quem tenha transferido um valor por engano. Mas a burla só acontece quando a vítima corresponde e segue todas as artimanhas instruídas pelo burlador. Em caso de não correspondência e não seguimento das instruções dadas pelo burlador, não existe possibilidade para interação entre as partes e consequentemente a burla não acontece. 

Há que salientar que quando existe correspondência e interação entre as partes (burlador e provável vitima), há sempre duas consequências possíveis: ou a burla acontece, ou a burla não acontece, dependendo da correspondência da pessoa. Essa correspondência pode ser negativa (quando o individuo descobre que se trata de uma burla e desiste, não culminando por ser burlado) ou positiva (quando o individuo não sabe que se trata de uma burla e segue as instruções culminado por ser burlado).

Referências Bibliográficas

Baratta, Alessandro. 1999. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. 2a. Ed. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos.
Santos, Grasiele e Jesus, Rusche. 2011. Representação do Conceito de Criminalidade para Estudantes de Psicologia, Direito e Pedagogia. UPM. Disponível em: <http://www.mackenzie.br/fileadmin/Pesquisa/pibic/publicacoes/2011/pdf/psi/grasiele_aparecida.pdf>. Acesso em 17 de Maio de 2017.
Sa Garay, Humberto. 2015. Interceptação Telefônica, Serendipidade e Criminalidade. Disponível em: <https://pt.linkedin.com/pulse/intercepta%C3%A7%C3%A3o-telef%C3%B4nica-serendipidade-e-humberto-de-s%C3%A1-garay> Acesso em: 21 de Maio 2017.
Veras, Ryanna. 2006. Os Crimes do Colarinho Branco na Perspectiva da Sociologia Criminal. Dissertação de Mestrado em Direito. PUC/ São Paulo.


[1]Extraído em: Jurislingue. Disponível em: <http://jurislingue.gddc.pt/fora/resultado_pesquisa_termos.asp?Termo_Portugues=Burla> Acesso em: 22 de Maio 2017.
[2] De 21 anos de idade, estudante na UEM e residente no Complexo Residencial do Campus Universitari Principal da UEM, entrevistado na sua residência.
[3] De 38 anos de idade, mãe de uma filha, doméstica e residente no Bairro da Maxaquene “A”, entrevistada em sua casa.
[4] De 25 anos de idade, comerciante e residente no Bairro de Xipamanine, entrevistada na sua barraca de venda de produtos alimentares no mercado de Xipamanine.
[5] De 23 anos de idade, estudante na UEM e entrevistada no Campus Universitário Principal da UEM.
[6] De 30 anos de idade, mãe de dois filhos e estudante universitária, entrevistada na sua residência, no bairro da Maxaquene “A”.

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